Evocação do Recife


Recife 
Não a Veneza americana 
Não a Mauritsstad dos armadores das Índias Ocidentais 
Não o Recife dos Mascates 
Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois 
— Recife das revoluções libertárias 
Mas o Recife sem história nem literatura 
Recife sem mais nada 
Recife da minha infância 
A rua da União onde eu brincava de chicote-queimado 
e partia as vidraças da casa de dona Aninha Viegas 
Totônio Rodrigues era muito velho e botava o pincenê 
na ponta do nariz 
Depois do jantar as famílias tomavam a calçada com cadeiras 
mexericos namoros risadas 
A gente brincava no meio da rua 
Os meninos gritavam: 
Coelho sai! 
Não sai! 

A distância as vozes macias das meninas politonavam: 
Roseira dá-me uma rosa 
Craveiro dá-me um botão 

(Dessas rosas muita rosa 
Terá morrido em botão...) 
De repente 
nos longos da noite 
um sino 
Uma pessoa grande dizia: 
Fogo em Santo Antônio! 
Outra contrariava: São José! 
Totônio Rodrigues achava sempre que era são José. 
Os homens punham o chapéu saíam fumando 
E eu tinha raiva de ser menino porque não podia ir ver o fogo. 

Rua da União... 
Como eram lindos os montes das ruas da minha infância 
Rua do Sol 
(Tenho medo que hoje se chame de dr. Fulano de Tal) 
Atrás de casa ficava a Rua da Saudade... 
...onde se ia fumar escondido 
Do lado de lá era o cais da Rua da Aurora... 
...onde se ia pescar escondido 
Capiberibe 
— Capiberibe 
Lá longe o sertãozinho de Caxangá 
Banheiros de palha 
Um dia eu vi uma moça nuinha no banho 
Fiquei parado o coração batendo 
Ela se riu 
Foi o meu primeiro alumbramento 
Cheia! As cheias! Barro boi morto árvores destroços redemoinho sumiu 
E nos pegões da ponte do trem de ferro 
os caboclos destemidos em jangadas de bananeiras 

Novenas 
Cavalhadas 
E eu me deitei no colo da menina e ela começou 
a passar a mão nos meus cabelos 
Capiberibe 
— Capiberibe 
Rua da União onde todas as tardes passava a preta das bananas 
Com o xale vistoso de pano da Costa 
E o vendedor de roletes de cana 
O de amendoim 
que se chamava midubim e não era torrado era cozido 
Me lembro de todos os pregões: 
Ovos frescos e baratos 
Dez ovos por uma pataca 
Foi há muito tempo... 
A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros 
Vinha da boca do povo na língua errada do povo 
Língua certa do povo 
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil 
Ao passo que nós 
O que fazemos 
É macaquear 
A sintaxe lusíada 
A vida com uma porção de coisas que eu não entendia bem 
Terras que não sabia onde ficavam 
Recife... 
Rua da União... 
A casa de meu avô... 
Nunca pensei que ela acabasse! 
Tudo lá parecia impregnado de eternidade 
Recife... 
Meu avô morto. 
Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro 
como a casa de meu avô.


作者
Manuel Bandeira

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